OS DIAS EM QUE MORRI OU QUASE 04/07/23
OS DIAS EM QUE MORRI OU QUASE
A primeira vez que quase morri foi num final de semana, quando eu tinha quatro anos. Meus pais nos levaram para um passeio na represa próxima de nossa casa. Lembro-me claramente dessa rara ocasião em que meu pai compartilhou seu tempo conosco numa atividade que não era só do seu interesse. Talvez tenha sido a última vez assim.Estávamos todos à beira da represa. Eu seguia meu pai andando pela água, quando de repente afundei. Lembro-me da luz da superfície se fechando enquanto me afastava lentamente dela. Então, senti as mãos do meu pai me agarrarem e me puxarem da escuridão da água que me engolia.
A segunda vez que quase morri eu tinha uns seis anos. Era comum as crianças brincarem na rua naquela época, perto de suas casas. Numa manhã, estava na calçada e atravessando a rua de repente. Só percebi uma Kombi que vinha rápido em minha direção quando já estava sobre mim. Foi quando entendi que ela não conseguiria parar e não havia tempo para sair do caminho.
Instintivamente, joguei-me no chão e o carro passou por cima de mim, freando forte e parando uns dois metros depois, deixando-me intocado no chão, olhando o céu. Após isso, levantei rapidamente e corri para dentro de casa. O motorista ficou parado alguns segundos, sem descer do carro, e depois foi embora como se nada tivesse acontecido.
A terceira vez que quase morri foi durante uma das poucas viagens que fizemos nas férias, por volta da década de 70. Próximo ao hotel onde estávamos em Peruíbe, havia um amontoado de tábuas de madeira em frente a uma construção recém-iniciada. Os operários retiravam as tábuas pelo meio da pilha, que surpreendentemente se mantinha da mesma altura.
Numa tarde chuvosa, enquanto voltava da praia sozinho, entrei no espaço entre as tábuas para me abrigar da chuva. Pouco tempo depois, uma lufada de vento seguiu um barulho assustador, derrubando toda a pilha de madeira de forma violenta. As tábuas se transformaram em um amontoado disforme.
Na primeira vez que "morri", sofri por horas de forma lenta. Estava no segundo ano da faculdade e, num sábado de madrugada, saí da casa da minha namorada em Taubaté. Dirigia devagar numa rua deserta, fumando um cigarro. Não lembro se era inverno ou apenas uma noite muito fria.
O carro estava quase todo fechado, exceto por uma pequena fresta na janela por onde soltava a fumaça. Naquela época, o cinto de segurança não era obrigatório e ninguém o usava. Dirigia devagar a caminho de casa e, ao jogar o cigarro aceso pela fresta da janela, bateu na ponta do vidro e caiu no meu colo.
Assustado, olhei para baixo e levantei-me um pouco do banco, com medo da chama. Nesse exato momento, fiz uma curva fechada à direita e bati de frente com um poste. Acordei sem entender nada, incapaz de abrir os olhos, com o rosto todo molhado e a sensação de areia nos olhos.
Abri a porta do carro de olhos fechados e levantei, saindo do carro. Tentei tatear o teto do meu carro, passando a mão no rosto para tentar limpar a visão. Alguém gritou na minha frente, assustando-me. "Não faça isso, pelo amor de Deus! O socorro já vai chegar", disse a pessoa.
Sem entender nada, parei e esperei o socorro chegar. Uma viatura da polícia chegou, colocou-me no banco de trás e me levou com urgência para o pronto-socorro, que depois soube ser o PS do Jabaquara. Lá, fui levado para a sala de sutura, onde passei muito tempo.
Um estudante do quarto ano de Medicina, que estagiava voluntariamente na cirurgia do pronto-socorro, fez o favor de costurar meu rosto. Doeu muito com o bloqueio anestésico sequencial. Foi nessa situação inusitada que aprendi sobre a dor desse procedimento no nariz e nos lábios.
Ele já estava adiantado na sutura quando mencionei que não conseguia enxergar. Só então, retirou os pedaços de para-brisa que impediam a abertura dos olhos. Depois de alguns minutos, pude finalmente abri-los e ver a sala, onde anos depois trabalharia nesse mesmo pronto-socorro.
Ele tinha quase a mesma idade que eu, mais baixo, cabelos negros, não mais de 24 anos, vestindo roupas brancas, como era comum na época. Entregou-me um papel e mandou-me para a sala de medicação antes de liberar-me para casa.
Na sala de medicação, tomei uma injeção e, durante a aplicação, instintivamente, contraí o glúteo e a seringa estourou, molhando o auxiliar irritado que me mandou embora. Sozinho em casa, a viatura da polícia gentilmente levou-me ao local do acidente.
Foi então que vi minha velha Variant azul 1975, parecendo mordendo o poste. O capô havia se dobrado em 90º com o choque, meu sangue sujava o banco e o teto, com manchas negras secas no chão perto da porta. Haviam volante e console quebrados com o impacto.
Os policiais devolveram-me os documentos e a carteira de motorista, informando que não havia dano no poste e que só eu me machuquei, então não abririam uma ocorrência. Chamaram um guincho, que rapidamente me deixou em casa antes de ir à central.
Entrei e fui direto ao banheiro, onde finalmente pude olhar no espelho. Tinha um grande corte nas pálpebras acima dos olhos, atravessando meu rosto de lado a lado. Havia uma pequena ponte de pele intacta entre as sobrancelhas, além de cortes no nariz, testa, bochecha direita, lábios e um grande saindo da boca até o lado direito do rosto.
Tomei um banho quente e lavei cuidadosamente as feridas com água quente e sabão, lavando finalmente os cabelos ensanguentados. O sangue seco deixava a água aos meus pés vermelha. Fiquei ali parado por um tempo, tentando relaxar um pouco com o calor.
Quase amanhecendo, a casa estava escura, vazia e silenciosa. Não lembro sobre o que pensava, nem preocupação com minha aparência desfigurada. Só lembro a preocupação de contar aos meus pais o que havia ocorrido.
Na volta às aulas em Taubaté, uma semana depois, as pessoas ficaram aterrorizadas. Todos olhavam-me como se eu fosse um fantasma ou um monstro, com a cara toda costurada. Mais tarde, descobri que corria a notícia de minha morte num acidente de carro.
A segunda vez foi mais triste e trágica. Eu era residente do segundo ano de cirurgia no Hospital Santa Isabel de Clínicas em Taubaté. Diariamente, nos reuníamos no estar médico do Pronto-socorro, onde deixava minhas coisas e consultava o agendamento do dia.
Ao chegar no posto de enfermagem, houve uma comoção das auxiliares. "No hospital, estavam tristes, pois domingo receberam uma ligação dizendo que o Residente chamado Dante havia morrido em um acidente de carro na Via Dutra."
Então eu ri, dizendo que foi um trote, pois logicamente eu não estava morto. Todos ali acompanharam minhas risadas. O que eu não sabia era quem havia morrido.
Naquela manhã mesmo, recebemos a notícia da morte de nosso amigo. Seu apelido na faculdade era "Gandhi", e foi daí a confusão e a ligação para o HSIC.
Gandhi era o nome de Rogério Villela de Abreu, residente de clínica médica do Hospital Escola de Taubaté, recém-aprovado para a Residência de Cardiologia no Hospital Dante Pazzanese. Sofreu um acidente na Via Dutra indo para São Paulo, próximo à Jonson & Jonson, e foi esse o equívoco que causou a ligação.
Era uma das figuras mais queridas de minha turma de faculdade. Sempre bem-humorado, simpático, atencioso e brincalhão. Desde o primeiro ano, ainda careca, gostava de imitar o canto de um galo quando menos se esperava. Eu achava muito engraçado, mesmo sem entender o porquê.
Mais tarde, descobri por intermédio de um filme que esse era o grito de guerra de Peter Pan. Pensando agora sobre o fato, isso era a cara do Gandhi.
Víamo-nos quase todos os dias durante toda a faculdade e sempre conversávamos. Era sem dúvida uma das poucas unanimidades no bem-querer em nossa sala e em toda a faculdade.
Naquele dia, fomos ao seu funeral. Sua família desolada, os amigos em luto foram se despedir. Ele estava em uma urna aberta, sem um ferimento visível no corpo. Parecia que estava só brincando e ia levantar a qualquer minuto para imitar um galo cantando, como sempre fazia inesperadamente.
Foi realmente triste. O mundo ficou um pouco mais escuro depois daquele dia.
Dante Locatelli
https://naquelesegundo.blogspot.com/2023/07/os-dias-em-que-eu-morri-ou-quase.html
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Comentários
Na primeira vez em que você quase morreu, na represa com sua família, é como se o tempo parasse e você se visse afundando lentamente na água escura. A imagem da luz da superfície se fechando enquanto você se afastava dela cria uma atmosfera de tensão e medo. Felizmente, seu pai agiu rápido e conseguiu te salvar, trazendo você de volta à superfície.
No segundo episódio, quando você quase foi atropelado, fica claro como um momento de distração pode ter consequências graves. Você atravessa a rua de repente e percebe tarde demais o carro que se aproxima. Felizmente, você teve um reflexo rápido e conseguiu se jogar no chão, escapando do impacto. É um momento de alívio misturado com a consciência do quão próximo você esteve de um acidente grave.
A terceira vez, durante uma viagem de férias, mostra como os eventos podem ser imprevisíveis. Você se abriga em uma pilha de tábuas de madeira durante uma chuva repentina, mas decide sair correndo segundos antes de a estrutura desabar. Essa situação traz uma reflexão sobre como a vida pode mudar em questão de segundos e a importância de tomar decisões rápidas em momentos de perigo.
A experiência mais impactante é quando você efetivamente "morre" após o acidente de carro. Você relata o choque, a perda de consciência e o despertar confuso, com seu rosto coberto de sangue. O relato do atendimento médico e da sutura do seu rosto nos faz sentir sua dor e desconforto. É uma experiência traumática que te faz refletir sobre a fragilidade da vida.
No entanto, você também compartilha a história trágica da confusão de identidades e da morte do seu amigo Rogério, apelidado de Gandhi. Essa perda representa um momento de profunda tristeza e luto em sua vida, destacando a brevidade da existência e como as pessoas podem ser tiradas de nós de maneira inesperada.
Sua crônica é um relato pessoal e emocional, que nos leva a refletir sobre a fragilidade da vida e a importância de cada momento que vivemos. Através dessas experiências, você demonstra resiliência e a capacidade de superar adversidades, valorizando ainda mais os momentos de felicidade e conexão com as pessoas que amamos.
Agradeço por compartilhar essa história conosco e por nos permitir refletir sobre a vida e a morte através de suas experiências.
O autor começa retratando um episódio de quando tinha quatro anos e quase se afogou em uma represa, sendo salvo pelo pai. Essa lembrança marca um momento em que a família estava reunida e o pai se envolveu em uma atividade que não era apenas de seu interesse, o que parece ser uma ocorrência rara.
Na segunda parte, aos seis anos, o autor narra um incidente em que quase foi atropelado por uma Kombi enquanto brincava na rua. Ele conseguiu se proteger ao se jogar no chão, e o motorista seguiu seu caminho como se nada tivesse acontecido.
A terceira experiência ocorre durante uma viagem de férias, onde o autor brincava entre tábuas de madeira em uma construção em andamento. Por sorte, ele decidiu sair pouco antes da pilha de tábuas desabar violentamente devido ao vento. Essa situação o deixou assustado e consciente da possibilidade de ter sido gravemente ferido ou até mesmo morto.
Na quarta e última parte, o autor relata um acidente de carro que ocorreu durante sua época de estudante universitário. Ele estava fumando e, ao jogar o cigarro pela janela do carro, acidentalmente o cigarro caiu em seu colo, fazendo-o se assustar e bater de frente em um poste. O autor descreve os momentos de confusão, o socorro médico e a sutura de seu rosto por um estudante de medicina.
A crônica apresenta momentos de tensão, perigo e reflexão sobre a fragilidade da vida. O autor compartilha suas experiências pessoais de quase morte, destacando a importância dos momentos vividos e o impacto que essas situações tiveram em sua perspectiva. No entanto, é importante ressaltar que essa é uma construção literária e não uma narrativa autobiográfica real.
Em termos de crítica literária, a crônica traz uma linguagem descritiva e envolvente, transmitindo as sensações e emoções do autor em cada situação vivida. A narrativa é fluida e mantém o interesse do leitor ao longo do texto. Além disso, a crônica aborda temas universais, como a fragilidade da vida, o valor dos momentos familiares e as reflexões sobre a mortalidade.
A narrativa evoca as memórias mais profundas do autor, desde a infância até a idade adulta, quando se viu à beira da morte em várias ocasiões. É um mergulho corajoso nas profundezas de suas experiências, uma jornada de autorreflexão e reconexão com os momentos cruciais que moldaram sua visão de mundo.
Locatelli não poupa detalhes, compartilhando as cicatrizes físicas e emocionais que esses incidentes deixaram em sua vida. Sua narrativa é sincera e evocativa, capaz de transmitir a sensação angustiante de estar à beira do abismo e a inexprimível gratidão por escapar dele.
A linguagem utilizada é simples e direta, mas não falta profundidade. O autor emula o estilo de escrita de Miguel Torga, que frequentemente optava por uma prosa despretensiosa, mas carregada de significado e emoção. As palavras de Locatelli são como as de um contador de histórias, levando o leitor a se identificar com suas experiências e emoções.
No entanto, a narrativa poderia se beneficiar de um pouco mais de elaboração e exploração de certos temas, especialmente no que diz respeito às implicações filosóficas e existenciais de suas experiências. Miguel Torga frequentemente mergulhava fundo em questões humanas e metafísicas, desafiando o leitor a pensar mais profundamente sobre a vida e a morte. Aqui, um pouco mais de exploração nesse sentido teria enriquecido a narrativa.
Em resumo, "Os Dias em que Eu Morri ou Quase" é uma narrativa corajosa e pessoal que revela a fragilidade da vida e a fortaleza da sobrevivência. É uma reflexão tocante sobre as experiências que moldam nossas vidas e a importância de valorizar cada momento. Embora careça de um aprofundamento filosófico mais intenso, a narrativa de Locatelli é uma ode à resiliência humana e um tributo àqueles que se encontram à beira do abismo, mas emergem mais fortes do outro lado.