O jogo dos Deuses

 

O jogo dos Deuses


Apresentação

 

Os Jogos dos Deuses é uma fábula moderna, onde a linha entre o onírico e a realidade se dissolve como névoa ao sol. As vidas dos mortais, desde sempre, são manipuladas por forças invisíveis, incontroláveis — por vezes intensas, em outras vezes sutis — que tecem uma tapeçaria densa de mistério, poder e destino.

No centro dessa trama está Sophia Baalbek, uma jovem cuja existência sofre uma transformação radical e mágica após assistir a um espetáculo aéreo em Beirute. Devastado com sua súbita ausência, seu pai envia os filhos numa jornada quase mítica para encontrá-la e trazê-la de volta.

À medida que a busca avança, surgem revelações que desvelam uma verdade mais profunda: a abdução de Sophia é apenas uma peça num jogo maior, no qual os deuses — esses velhos artífices do destino — movimentam seus peões num tabuleiro invisível. Em Os Jogos dos Deuses, a vida humana se revela parte de um jogo ancestral, onde as forças arquetípicas moldam o destino com mãos de sombra e luz.

Este livro é um convite à contemplação: sobre o tênue equilíbrio entre o livre-arbítrio e o destino, sobre o sopro silencioso das potências superiores que atravessam nosso caminho, e sobre a resiliência do espírito humano diante do incontrolável.

Prepare-se para uma jornada ao mesmo tempo emocionante e filosófica — onde cada capítulo revela um novo mistério, e cada personagem carrega um fragmento da verdade escondida no tecido do mundo.

Os Jogos dos Deuses é uma obra que não apenas envolve, mas instiga e inspira — um chamado para que o leitor questione os grandes enigmas da existência e, quem sabe, encontre a si mesmo no espelho dos mitos.


 

O Mistério na Luz

 

Uma figura indefinida, ofuscada pela luz, aproxima-se da fonte d'água escura como a infinita noite que tudo cerca e limita. Com um gesto da ponta do seu dedo em luz, a figura cria ondas concêntricas na obsidiana água, revelando uma encantada miragem.

Uma jovem de singular beleza surge, e seus cabelos brilham em ouro e luz, vestida com linho branco adornado com sutil dourado na barra. Ela colhia os mais belos narcisos em um campo de flores, compondo aos poucos um buquê delicado em branco e amarelo. O vento da primavera iluminada soprava, fazendo dançar tudo que a vista guardava.

O observador, fascinado, aproximou-se, e suas mãos tocaram a borda da fonte, enquanto seus encantados olhos eram da jovem prisioneiros.

O momento pareceu congelar no tempo — a água refletindo cada suave movimento da querida imagem, capturando toda sua intocada beleza. Contudo, a serenidade foi rompida por um homem que subitamente surgiu ao lado da bela jovem.

Então, em um gesto repentino, o observador cessa a imagem, para proteger seu encanto da intrusão do mundo. A efêmera e mágica beleza é guardada em sua memória — e agora é dele, eterna prisioneira.


 

Na Tempestade de Raios

 

Em uma lanchonete de Beirute, um velho aparelho de televisão transmitia o telejornal. Entre os chiados do equipamento e o barulho dos clientes, era difícil entender o que dizia o repórter.

— Bem-vindos às notícias do tempo. Depois da tempestade Daniel, que destruiu vários países em todo o Mediterrâneo, as nuvens voltam a dançar em um balé de poder e luz.

— Hoje, somos testemunhas de um espetáculo aterrador nos céus do Líbano. Nosso radar meteorológico captura uma formação impressionante: um conjunto de nuvens estrato-cúmulo sobre o oceano se ergue ameaçador. Em sua profundidade, luzes em flashes iluminam o céu como se a tempestade estivesse viva, lançando raios ardentes que brilham de nuvem em nuvem — uma coreografia elétrica que pinta o céu de forma alarmante. As chuvas, ainda sobre o mar, nos deixam apreensivos com a possibilidade de a tempestade dirigir-se à terra e novamente causar grandes desastres — dizia o repórter.

Ninguém na lanchonete dava atenção à fala poética do repórter. E mesmo que dessem, não poderiam ver o que de fato acontecia — algo que deixaria qualquer um extasiado.

Entre essas nuvens, em meio aos relâmpagos, um pequeno avião, que parecia ter surgido do nada, desafiava a fúria dos ventos.

Era como se flutuasse nos olhos de um gigante, lutando graciosamente contra as correntes furiosas. Sem espectadores, essa batalha aérea seguia silenciosa, tão limpa e precisa quanto um balé. O pequeno avião enfrentava as forças incontroláveis da natureza com leveza e firmeza.

Ninguém presenciava a majestosa habilidade que conduzia o avião cada vez mais longe da tempestade. À medida que se afastava do centro do caos, sua silhueta destacava-se contra o fundo revolto das nuvens.

Aproximou-se lentamente, como uma ave em um céu calmo de primavera. Finalmente, alinhou-se à pista e realizou um pouso perfeito. Sua jornada impossível e anônima através da tormenta chegava ao fim.

O avião taxiou vagarosamente até parar diante do hangar. O motor silenciou. A porta se abriu. E, envolta nas luzes do entardecer, uma figura forte desceu, caminhando com firmeza para dentro do hangar.


 

A Mansão Baalbek

 

Elian Baalbek é o patriarca da família, fiel às suas origens fenícias e profundamente ligado aos negócios. Comerciante experiente e bem-sucedido, lidera a Entreprise de Fret Maritime e a Entreprise de Transport Totale — a EFM ETT — dominando o comércio marítimo do Líbano e assegurando uma posição de influência na sociedade.

Apesar da imagem de homem sério e pragmático, Elian nutre um amor profundo por sua filha Sophia. A relação entre eles é marcada por um desejo protetor e pela intenção de oferecer-lhe sempre o melhor. Reconhecido por sua ética de trabalho e habilidade em enfrentar desafios, Elian equilibra tradição e modernidade com rara elegância.

Na mansão Baalbek, a governanta Sra. Nour — uma mulher de aproximadamente 40 anos, de olhar atento e cabelos escuros — adentra o quarto de Sophia às seis e meia da manhã. Ela conhece cada detalhe da rotina familiar, sendo presença discreta e indispensável.

Com passos firmes e mãos hábeis, atravessa o quarto onde a luz da manhã começa a se infiltrar por entre as cortinas. Ao abri-las, deixa que o feixe dourado dissolva as sombras do ambiente, revelando tons suaves e acolhedores que compõem o refúgio da jovem.

Sophia desperta entre lençóis macios, movendo-se lentamente no calor tranquilo do quarto. Cumprimenta Nour com ternura. A governanta sorri:

— O dia está tão quente e belo quanto a primavera que você merece.

Após o banho em um banheiro de mármore rosa claro, Sophia segue para o café da manhã, servido na ampla varanda voltada ao jardim. A mesa está impecavelmente posta com pratos delicados, flores frescas e alimentos preparados com zelo.

Sophia agradece com um sorriso, saboreando cada detalhe da refeição com a atenção de quem reconhece o cuidado ao seu redor.

Mais tarde, o motorista a conduz até a faculdade. Durante o trajeto, revisa compromissos no celular até que a paisagem libanesa pela janela captura novamente sua atenção.

O show aéreo é o assunto da cidade. Na universidade, todos comentam o espetáculo e o misterioso aviador.

Na sala antes da aula, Laura — colega de classe — relata com entusiasmo:

— A pista de obstáculos era formada por cones duplos gigantes. O piloto precisava ser absurdamente rápido e preciso, jogando o avião de um lado a outro, subindo e descendo numa dança alucinada. Parecia impossível... O público vibrava como numa arena!

Sophia, ouvindo aquilo, sente-se atraída pelo mistério e pela ousadia do voo. Mesmo escondendo seu antigo desejo de voar, algo naquele relato desperta nela uma empolgação quase infantil — como se algo profundamente seu estivesse sendo chamado à tona.

Ela não diz nada, mas em seu coração já decidiu: ela precisa ver aquele espetáculo com os próprios olhos.


 

O Pedido ao Seu Pai

 

Sophia estava sentada na sala de estar da Mansão Baalbek, folheando um livro de arte enquanto esperava seu pai, Elian Baalbek, voltar do escritório. O sol da tarde filtrava pelas cortinas, criando padrões de luz no chão de mármore polido.

Ao ouvir os passos de Elian se aproximando, Sophia levantou os olhos do livro e sorriu para ele. Seu pai era uma figura imponente e respeitável, com uma aura de seriedade misturada com calor paternal.

— Boa tarde, meu pai. Como foi o seu dia? — Sophia perguntou, tentando esconder sua excitação.

— Foi produtivo, como sempre. E o seu, Sophia? O que esteve fazendo? — Elian respondeu, sorrindo de volta para ela.

Sophia hesitou por um momento, pensando em como abordar o assunto do show aéreo. Sabia que seu pai era cauteloso com essas atividades, especialmente após a tempestade recente.

— Bem, pai, eu queria lhe perguntar algo — começou, escolhendo as palavras com cuidado. — Você ouviu falar do show aéreo em Beirute? Todas as minhas amigas estão falando sobre isso e eu adoraria poder ir assistir.

Elian inclinou a cabeça, ponderando a solicitação. Era um pai carinhoso, mas também responsável, sempre atento à segurança da filha.

— Sophia, você sabe que prezo pela sua segurança. Depois da tempestade e dos transtornos que causou, fico relutante em deixá-la ir a eventos assim. Mas... — ele hesitou, notando o desapontamento em seu rosto. — Se você prometer que tomará cuidado e ficará com suas amigas o tempo todo, considerarei permitir que vá.

— Obrigada, papai! Prometo ser cuidadosa e ficar junto das meninas — disse ela, sorrindo e correndo para abraçá-lo.

Elian retribuiu o abraço, satisfeito por vê-la feliz. Sabia o quanto aquilo significava para ela.

Empolgada, Sophia correu para o quarto, se jogou na cama e pegou o celular:

Sophia (grupo “amigas”): Meninas, vocês não vão acreditar. Meu pai deixou! Vamos todas ao show aéreo!

Layla: Sério? Que incrível! Estou super empolgada.

Maya: Isso é maravilhoso. Mal posso esperar para ver as acrobacias com vocês.

Rania: Uau! Que notícia maravilhosa. Estou com saudade de vocês. Vai ser incrível!

Yasmin: Nossa, estou emocionada. Vai ser o melhor dia em muito tempo.

Sophia: Estou tão feliz que estejam animadas. Que tal nos encontrarmos aqui em casa antes do show? Assim curtimos juntas antes de irmos.

Layla: Claro, adoraria. Sua casa é sempre tão acolhedora.

Maya: Combinado. Vamos aproveitar esse tempo juntas.

Rania: Ótima ideia, Sophia. Estou ansiosa para nos reunirmos.

Yasmin: Sim! Mal posso esperar para ver vocês!

As Amigas de Sophia

 

Sophia aguardava ansiosamente a chegada das amigas. O sol da tarde lançava sua luz sobre o cenário, destacando a elegância da arquitetura neoclássica da residência. Os jardins bem cuidados exalavam o suave aroma de flores, deixando o ambiente acolhedor e convidativo.

O carro parou suavemente em frente à entrada, e o motorista, seguindo as instruções do pai de Sophia, abriu a porta para as amigas. Sophia, que havia recebido o aviso da chegada delas, foi até a entrada recebê-las. Radiante, abriu um sorriso caloroso e abraçou cada uma com entusiasmo.

— Que bom que vocês vieram! Fico feliz em vê-las — disse Sophia.

— Oi, Sophia! Estou tão animada para ver o show aéreo — respondeu Layla, empolgada.

— Sua casa está incrível como sempre. Parece um cenário de filme — comentou Maya, observadora.

— Estou ansiosa para ver as acrobacias dos aviões — completou Rania.

— Já viu o céu? O palco do show aéreo está perfeito hoje — disse Yasmin.

— Vamos, meninas. Tenho um cantinho especial para nós antes de irmos — disse Sophia, guiando-as até o terraço.

No amplo terraço da casa, o sol da tarde criava sombras suaves entre as plantas. A brisa da primavera trazia o perfume das flores recém-desabrochadas, e o som leve das folhas dançava ao fundo.

O espaço era acolhedor, decorado com vasos de cerâmica e treliças floridas, oferecendo uma vista panorâmica da cidade ao longe. Lá, acomodaram-se entre almofadas e cadeiras confortáveis, conversando sobre o espetáculo que estavam prestes a presenciar.

— Meninas, vocês não vão acreditar nas histórias que ouvi sobre o show — disse Layla, animada.

— Conta pra gente! — pediu Maya.

— Uma amiga me disse que os aviões voam tão próximos que parecem prestes a se chocar! Tem acrobacias de tirar o fôlego — contou Layla, vibrante.

— Que adrenalina! — disse Rania. — Imaginem só as formações... Deve ser mágico.

— E a pista de obstáculos que a Laura comentou? Estou ansiosa para ver — disse Sophia.

— Os pilotos ainda interagem com o público. Fazem manobras que surpreendem até os veteranos — comentou Maya.

— Isso vai ser inesquecível — disse Rania.

— Estamos quase lá. Mal posso esperar — falou Yasmin.

— E o aviador misterioso? Quero muito vê-lo em ação — acrescentou Layla.

O motorista apareceu no terraço:

— Senhoritas, o carro está pronto. O show começará em breve.

Sophia se levantou com os olhos brilhando:

— Vamos aproveitar. Tenho certeza de que será inesquecível.

As amigas se entreolharam, sorrindo com entusiasmo. Entraram no carro rumo ao evento, com os corações pulsando de expectativa e alegria.


 

O Show Aéreo

 

Enquanto o carro se aproximava da área do aeroporto, Sophia e suas amigas puderam ver a multidão animada indo para o show. O som da música ao longe e o burburinho das conversas enchiam o ar de expectativa. O motorista conduziu o carro até o portão principal do evento.

Logo avistaram cartazes em tamanho real dos cinco pilotos com seus aviões, com nomes artísticos e cores padronizadas para identificação. As cores vibrantes ajudavam a reconhecer os pilotos mesmo quando seus aviões cortavam o céu.

O motorista prosseguiu até a entrada da área reservada. Sophia e as amigas foram recebidas por uma entrada iluminada e decorada. O céu azul, salpicado por nuvens brancas, parecia feito sob medida para o espetáculo. Após a verificação dos convites, foram conduzidas a um espaço elegante com assentos confortáveis e bufê completo.

— Uau, olhem só isso. Estou ansiosa para ver as acrobacias — disse Layla.

Maya abriu um panfleto colorido com o roteiro do evento.

— É melhor do que eu imaginava! Tem até sorteio para voar com os pilotos — comentou, sorrindo.

— Imaginem ser sorteada... Acho que eu não teria coragem! — disse Rania.

— Vamos tirar uma foto juntas? — sugeriu Yasmin.

— Sim! Estou tão feliz por estarmos aqui — respondeu Sophia.

Elas pediram a um dos presentes que registrasse o momento em frente a um cartaz do evento. A animação era contagiante.

A voz do locutor então preencheu o ambiente:

— Senhoras e senhores, sejam bem-vindos ao espetáculo aéreo mais emocionante da temporada!

Com o anúncio, o público pegou os panfletos distribuídos na entrada, examinando as manobras previstas e a menção ao sorteio. A empolgação aumentava.

Na primeira parte, os pilotos exibiram suas habilidades em voos solo. Manobras desafiadoras, quase antinaturais, mantinham os olhos da plateia fixos no céu. Aviões pareciam flutuar no ar, suspendendo o tempo.

A seguir, formações sincronizadas tomaram o céu, desenhando padrões com precisão matemática. A beleza visual daquelas coreografias causava arrepio.

Durante uma breve pausa, música suave tomava conta do espaço. Telões exibiam bastidores e entrevistas rápidas. A calmaria estratégica mantinha o público atento, à espera do retorno dos pilotos.

Logo, a trilha sonora cresceu e os aviões voltaram ao céu. Era hora da corrida de obstáculos: os pilotos enfrentariam um percurso demarcado por grandes cones infláveis. A tensão aumentava com cada curva.

Ao fim da corrida, enquanto o público ainda estava absorto nas manobras, o locutor retomou:

— E agora, o sorteio tão esperado! Quem serão os cinco escolhidos para voar com os nossos pilotos?

Enquanto os números eram anunciados, uma brisa leve percorreu o local. Muitos sentiram algo estranho, quase mágico. E então:

— Sophia! — ecoou o nome nos alto-falantes, como se o próprio céu tivesse escolhido.

O público vibrou. As amigas de Sophia olharam para ela, boquiabertas. Era como se o destino tivesse falado.

Sophia, em choque, relutava em acreditar. Olhou ao redor. Todos a encaravam. Seus olhos pousaram no panfleto onde o aviador misterioso sorria com doçura. Pensamentos se cruzavam em sua mente. Medo e desejo se misturavam. Aquilo que ela sonhara em segredo parecia ao seu alcance.

Na pista, os sorteados eram recebidos pelos pilotos. Capacetes foram ajustados, palavras trocadas. Quando Sophia se aproximou do aviador misterioso, a voz dele — grave e suave — dissolveu suas últimas dúvidas.

O voo começou calmo, crescendo em intensidade. Sophia sentia o vento, a liberdade, o mundo sumindo abaixo. Mas então, algo inesperado: uma falha? Um silêncio.

Ela se segurou, apreensiva. Confiava. Esperava. Mas para o público, tudo mudou. Um clarão. Uma explosão. O encanto daquele dia foi rompido.

A tragédia invadiu o céu.


 

Sophia Desperta

 

Sophia recobra lentamente a consciência em uma cama espaçosa, cercada por lençóis macios e almofadas luxuosas. Seus olhos se abriram para um quarto que ela não reconhecia — um ambiente amplo e imponente, digno de realeza ou de um sonho. As paredes eram adornadas com tapeçarias finamente trabalhadas, retratando cenas de grandeza e beleza. A mobília era elegante e refinada, com detalhes discretos em dourado que refletiam a luz com suavidade, criando uma atmosfera de requinte.

Ao se sentar, percebeu janelas altas que permitiam a entrada de luz natural, revelando jardins exuberantes e uma paisagem serena além. O chão de madeira polida brilhava, e uma lareira imponente dominava uma das paredes, aquecendo o quarto com o aroma do vento doce vindo do jardim.

Explorando o ambiente, Sophia percebeu a atenção aos detalhes: quadros artísticos, esculturas graciosas, uma escrivaninha entalhada e uma poltrona acolhedora completavam o cenário. O silêncio era interrompido apenas pelo sopro do vento e o som distante da natureza. Admirada e confusa, ela tentava compreender onde estava.

A única lembrança clara era a sensação de queda, a proximidade da morte. Forçando a memória, flashes voltavam: o piloto de sorriso encantador, o capacete sendo ajustado, a emoção do voo, a subida íngreme, a sincronia aérea. E então, o silêncio. Uma luz intensa. Um cheiro de maresia. Fragmentos desconexos — o couro branco, o calor, o caos. Tudo se embaralhava como se ela estivesse entre dois mundos.

Então, um jovem entrou no quarto. Seus passos eram leves e tranquilos. Ele se aproximou com naturalidade, seus olhos capturando a luz suave. Seu rosto sereno e curioso parecia reconhecer Sophia com ternura.

— Bom dia, Sophia. Dormiu bem? — disse com um sorriso que inspirava confiança.

Ela tentou sorrir, mas algo em sua mente estava fora de lugar.

— Bom dia... Acho que sim — respondeu hesitante.

— Você teve um dia agitado ontem. É compreensível que esteja se organizando. Lembra-se de como chegou aqui?

Sophia balançou a cabeça.

— Não... lembro do voo... depois tudo ficou confuso.

— Não se preocupe. As lembranças voltarão no tempo certo — respondeu o jovem com calma.

— Mas onde estou? Como vim parar aqui?

— Você está em um lugar seguro. Chegou de maneira peculiar, digamos assim. Tudo será esclarecido no momento certo. Por enquanto, descanse.

Ele levantou a mão suavemente. Seu sorriso acalmava, e uma serenidade envolveu Sophia como um cobertor morno. O sono começou a dominá-la.

— Agora, acalme-se. Tudo ficará claro em breve — murmurou ele.

Enquanto Sophia adormecia, ainda consciente o suficiente para ouvir sua última frase, o jovem sussurrou:

— Descanse, Sophia. Quando acordar, estarei aqui com você.

E assim, envolta em paz, ela se deixou levar pelo sono tranquilo.


 

A Morte do Aviador Misterioso

 

Na sala, a televisão estava ligada e os apresentadores do programa Al Jazeera News Hour discutiam os últimos acontecimentos da eleição presidencial americana e suas repercussões no Oriente Médio. Subitamente, foram interrompidos pela vinheta do Telejornal Al Jazeera Líbano – Edição Especial.

— Boa noite. Um acidente trágico no Show Aéreo de Beirute vitimou há pouco a figura querida do público conhecida como "Aviador Misterioso" — anunciou o repórter, enquanto imagens de um avião destroçado surgiam ao fundo.

— Na tarde de hoje, durante uma exibição de acrobacias, o Aviador Misterioso perdeu a vida juntamente com sua convidada, a senhorita Sophia Baalbek, herdeira da família Baalbek. As circunstâncias do acidente ainda não foram esclarecidas. Sua morte repentina abalou fãs e seguidores, que o admiravam por sua habilidade e carisma — continuou o âncora.

As imagens mostravam fãs depositando flores e acendendo velas no portão do evento, junto à imagem do piloto e seu avião.

— Figura icônica no Show Aéreo, o Aviador Misterioso deixa um vazio profundo para aqueles que o viam como símbolo de liberdade. A tragédia ocorreu durante as manobras finais — geralmente simples — o que levanta a possibilidade de falha mecânica. A morte também lança luz sobre sua vida pessoal, agora alvo de intensa investigação midiática.

Imagens da mansão Baalbek e de Elian Baalbek, visivelmente abalado, surgiram na tela.

— As autoridades buscam respostas. Enquanto isso, a nação libanesa se une em luto por essa perda irreparável. Seguiremos acompanhando os desdobramentos. Boa noite — finalizou o repórter.

Na mansão Baalbek, Elian estava devastado. A notícia da suposta morte de sua filha aniquilara seu espírito. Mas logo a segurança da Entreprise de Fret Maritime e da Entreprise de Transport Totale — sua companhia — notou algo incomum: a ausência de corpos nos destroços. Isso levantou a suspeita de um sequestro.

As autoridades mantiveram silêncio estratégico para evitar alarmar possíveis raptores. A mídia e a polícia começaram a investigar os bastidores do Show Aéreo e a história do Aviador Misterioso.

O mistério cresceu. Os documentos do aviador eram falsos. Ninguém sabia de onde ele vinha. Colegas e organizadores só tinham elogios, mergulhados em luto e descrença. Era como se ele nunca tivesse existido oficialmente, mas deixara marcas profundas.

A descoberta de que ele usava o nome de um verdadeiro piloto libanês-australiano, Theodore Zeris — que vivia fora do país, sem ligações locais — adicionou uma camada de complexidade. Era como se tivesse assumido uma identidade perfeita para passar despercebido.

As autoridades enfrentavam agora um labirinto de pistas falsas, personagens ocultos e intenções veladas. Quem era o Aviador Misterioso? Por que Sophia? E qual o destino real da jovem Baalbek?

A busca continuava, mergulhando todos os envolvidos em um enigma cada vez mais profundo.


 

Os Três Filhos de Elian Baalbek

 

Elian Baalbek sentia-se destroçado em meio a um turbilhão de emoções e acontecimentos incontroláveis. A notícia da morte de sua filha Sophia no trágico acidente do Show Aéreo de Beirute já o havia devastado. As imagens da aeronave destroçada e a comoção dos fãs do “aviador misterioso” aumentavam ainda mais seu sofrimento.

Desde que soube do ocorrido, Elian carregava uma culpa profunda por ter permitido que Sophia fosse ao show, mesmo tendo designado seguranças armados disfarçados para protegê-la. Eles falharam. E a possibilidade de sequestro — revelada com a ausência de corpos nos destroços — fincou ainda mais fundo o espinho da angústia. A ideia de que sua filha pudesse estar viva, mas em mãos cruéis, era um tormento insuportável.

Pálido, emagrecido, consumido pela dor, Elian recusava qualquer tratamento ou alimento. Sentado sempre na mesma cadeira da sala de estar — onde tantas vezes conversara com Sophia — não falava com ninguém e ignorava os apelos da equipe médica. Sua dor o fazia parecer um zumbi, corroído por dentro.

A cada dia sem respostas, a esperança se esvaía como areia entre os dedos. Até que, exaurido, Elian convocou seus três filhos: Félix, Silas e Caden.

— Não quero mais nada nesta vida além do retorno de sua irmã — disse com a voz cansada. — Darei tudo o que possuo a quem a trouxer de volta. Nada aos outros. Talvez seja injusto, mas não posso viver assim. Vão. Procurem os seguranças, os policiais, os detetives. Sigam qualquer pista. Este é meu último desejo. Ou não voltem... nem para o meu enterro.

— Pai, não fale assim. Também amamos Sophia. Nós a encontraremos — prometeu Félix, o primogênito, apoiado pelos irmãos.

Félix, ex-militar, conhecedor de táticas e estratégias, ativou sua rede de contatos internacionais. Silas, o irmão do meio, expert em tecnologia, vasculhava registros, comunicações e transações suspeitas. Já Caden, o caçula e mais carismático, usava sua habilidade social para se infiltrar em grupos suspeitos e coletar informações.

Enquanto os três traçavam caminhos distintos, Elian definhava, vítima da dor e da incerteza. Sem sucesso após semanas de buscas, os irmãos decidiram dividir-se e seguir destinos próprios, apostando na sorte.

Félix partiu para o norte, cruzando desertos na esperança de rastrear os supostos sequestradores. Silas seguiu para o sul, em busca de sinais, por menores que fossem. Caden, por fim, tomou o rumo leste, decidido a seguir qualquer pista que o levasse à irmã desaparecida.

E assim, com promessas no coração e um pai à beira do fim, os três filhos de Elian Baalbek partiram em busca do improvável, movidos pelo amor e pela fé de que Sophia ainda estivesse viva.


 

O Palácio em Creta

 

Todos a chamavam de senhora ou madame, e isso acontecia há tanto tempo que ela já se esquecera do próprio nome. Às vezes, confundia a ordem dos fatos, mas tudo era tão perfeito que já não parecia natural — ou talvez o natural fosse o próprio perfeito. Como negar-se a viver em plenitude, com desejos antecipados, e tudo em eterna harmonia? Astro, seu senhor, era bom, atencioso e belo como nenhum outro. Sua vida era um sonho, ou melhor, o mais belo dos sonhos jamais sonhados.

O passado havia se tornado uma fábula distante, esquecida. O acidente? Menos que uma lembrança. O presente era tudo o que existia — e era intoxicante. Ontem, ela teve sua primeira noite de amor com Astro. Hoje, recebeu nos braços seu filho, trazido pela ama sorridente para ser amamentado. Como se o tempo caminhasse sobre si mesmo.

As festas da primavera eram constantes. Os jardins do palácio, mágicos: sol, sombra, água e capim onde as crianças brincavam e riam. À noite, piscinas iluminadas projetavam reflexos dançantes nas folhagens ao vento. Risos dos filhos e o aroma das flores a envolviam como um feitiço.

Naquela manhã, Astro a acordou com um beijo e seu sorriso cativante. Após uma leve refeição, levaram-na ao jardim. Um cão os aguardava. Um galgo grego de porte médio, rabo enrolado e pêlo amarelo-claro. Ele abanava o rabo alegremente.

— Este é um dos três presentes de hoje — disse Astro. — Ele parece comum, mas é mágico. Sempre encontra sua presa.

Ela acariciou o animal, que se deleitou com o gesto.

— O segundo presente está ali — apontou para um tronco com uma seta fincada. Ele a retirou e entregou à esposa. — Esta é uma seta mágica. Sempre acerta o alvo.

Ela a lançou com leveza. A seta cruzou o jardim e acertou o centro do tronco oposto com precisão. Ela sorriu, encantada. Astro apenas a observava, em silêncio, antes de sorrir também.

— O terceiro presente — disse — é aquele.

Apontava para uma estátua de bronze que ela nunca notara. Um guerreiro imóvel. Astro se aproximou com ela:

— Este é Talion. Guardião eterno de Creta. Seu protetor.

Ao tocá-lo, a estátua ganhou vida. O homem, bronzeado, ajoelhou-se aos seus pés. Surpresa, ela levou a mão à boca. Astro tocou o ombro de Talion, que se ergueu. Recebeu a seta e se retirou com o cão.

— A partir de hoje, minha senhora, sua vida mudará — disse Astro com doçura. — Mas talvez você se sinta ainda melhor. Talvez deseje voltar aos sonhos irreais. Mas eles não retornarão. Hoje, você terá controle da sua vida. Tudo aqui é seu. Seja a mulher e mãe que pode ser.

Astro a beijou e abraçou. Ao soltá-la, o mundo ao redor pareceu vibrar e ganhar contornos mais nítidos — como um novo despertar.


 

 


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